Por Guilherme Coelho.

Publicado no caderno Prosa & Verso em 12 de Julho de 2008

Todos os anos, 115 mil jovens prestam serviço militar nas três Forças Armadas brasileiras. Até quatro anos atrás, esse número superava o total de alunos da maior universidade do país (que, aliás, é privada). Hoje, o Exército é uma mistura de universidade e serviço social. A avassaladora maioria dos jovens busca ali não o encaminhamento de uma vocação, mas sim um complemento de renda para suas famílias. 

A recente tragédia nos Morros da Providência e Mineira evidencia a urgência com que devemos repensar esta instituição. A primeira questão é quanto ao tipo e qualidade da formação que a sociedade brasileira gostaria de prover a estes jovens. Podemos constatar como o caráter assistencialista das Forças Armadas está evidente para as populações mais humildes – além de entronizada e aceita pelo oficialato, que talvez veja aí uma garantia de recursos. Devemos então nos perguntar se, para realizar um serviço social, precisamos treinar jovens com armas, num país com graves problemas de segurança pública. Complementarmente, devemos pensar se concordamos que essa distribuição de renda se dê por exclusão de metade da população, já que o serviço militar é obrigatório somente para homens (que, na verdade, hoje são quase todos voluntários). 

Em PQD, sem patrocínio de nenhum ente federal após três anos de editais, filmamos durante vinte meses a rotina de recrutas na Brigada Pára-quedista, os invejados PQDs, a tropa de elite (sem oportunismo) do Exército Brasileiro. As questões do parágrafo acima não constam do filme, mas são o seu contexto e nos servem aqui. Para nós, muito mais interessante era acompanhar, sem tese ou roteiro prévio, o pequeno cotidiano de 70 jovens e suas famílias nesse período de formação, um verdadeiro rito de passagem. Meninos se adaptando a uma instituição que representa, acima de tudo, a ordem – num país (ainda) desinstitucionalizante, onde adoramos driblar as regras. 

Partimos então para tentar fazer uma crônica fluminense, um retrato de certa juventude da Zona Oeste e Baixada. Há quarenta anos, em meio à ditadura militar, para falar do Exército era necessário metáfora ou analogia. Hoje, quando o ranço deixado pela ditadura parece arrefecer em nós, achamos que a melhor maneira seria encarar seus personagens em seu presente; olho no olho, fugindo do paternalismo, idealizações ou falsa piedade. E, claro, nos surpreendemos.

Há cinco anos éramos sedentos pelo realismo da periferia, essa palavra paulista. De lá para cá, muitos documentários (embora ainda poucos “de dentro”) fizeram a periferia chegar ao Fantástico e, com isso, cumpriu-se um papel que nos devíamos há vinte anos. Neste período, quando houve uma verdadeira explosão demográfica no país, a grande mídia ignorou imagens e linguagens desenvolvidas às margens das grandes cidades, seja na música, dança, vídeo ou artes plásticas. Poetas maiores aqui, referência para todos, são os Racionais MCs. 

Se o país se visse mais, se conhecesse melhor, certamente não nos surpreenderíamos com dados como, por exemplo, de que os 10% mais ricos da população (em termos salariais) têm uma renda per capita a partir de R$ 2.678, segundo a PNAD do IBGE de 2006. O segundo decil mais rico (entre 10% e 20% das maiores rendas) recebe, em média, R$ 1.346. Quando saíram estes dados, filmávamos os jovens PQDs, recrutas lutando por uma vaga que, num segundo ano, lhes renderia 1200 reais – integrando-os à média acima. (Hoje este salário já está acima de R$1500.)

Só então entendi a real, e potencial, demografia do grupo que acompanhávamos. Sem deixarem de ser desassistidos socialmente, com serviços públicos de má qualidade, estes rapazes disputavam, para dali a nove meses, os salários mais altos do país. Emprego formal, com encargos. Para mim, foi um exemplo da (aparentemente) contraditória, porém potente, mobilidade social no Brasil. Algo que já sabia de orelhada, mas não a trinta quadros por segundo.

Isso me levou a pensar o quão necessária seria uma atualização demográfica de como nos vemos. Embora não seja este o papel do cinema, de alguma forma podemos sim participar. Agora, mais que nunca, o Brasil sendo o emergente da vez, com commodities em alta, e com a mudança paradigmática trazida pelas novas bacias de petróleo e gás, precisaremos nos olhar melhor, para construirmos políticas públicas que atendam nossos muitos desafios. Seremos como a Noruega, que enricou com o petróleo de maneira democrática, investindo em serviços públicos de qualidade, ou seguiremos nosso legado patrimonialista, não miraremos o comum, e assim nos tornaremos um Emirado Tropical? 

Voltando à caserna, após testemunharmos o Exército como trampolim social, fiquei ainda com alguns pensamentos sobre o papel e o futuro desta instituição de mais de 350 anos. Primeiramente, a recente tragédia (e sintoma) com militares fardados agindo como bandidos sedimentou em mim a certeza que não devemos envolver o Exército em atividades de patrulhamento, salvo em eventos extraordinários como reuniões de chefes de Estado ou uma Copa do Mundo. No entanto, acredito que o setor de inteligência do Exército pode e deve trabalhar em conjunto com as polícias civil e militar, dividindo informação e contribuindo em políticas de segurança. Em segundo lugar, o controle das fronteiras me parece um tema urgente – embora pouco discutido – para o qual o Exército deve ter um papel ainda mais efetivo. Nesta toada, temos acompanhado o debate em torno da ocupação e proteção da Amazônia. Ali, o Exército me parece ser das poucas instituições que têm o respeito e admiração das populações locais e, por isso, deveria ser um instrumento importante na gestão desta enorme riqueza, brasileira e humana. Esta marcha para o interior seria até um tributo a Rondon e a seu cinegrafista, Major Reis, pioneiro do audiovisual brasileiro.

Apesar de nosso filme não versar sobre estas questões mais amplas, ficou claro para mim que é imperativo reformular o Exército hoje. Gradualmente transformando-o numa força profissional, acabaríamos por valorizar seu oficialato. Diminuindo seu serviço obrigatório, permitiríamos encontrar vocações não meramente assistencialistas. Isto se encaixa num desafio maior para o país hoje: ir além do assistencialismo puro. É consenso, e bom senso, que políticas sociais compensatórias funcionam melhor quando conjugadas com contrapartidas e incentivos. Uma era progressista – que não vivemos aqui há, pelo menos, cinquenta anos – poderia começar pela reforma das Forças Armadas, a mais capilarizada e, por isso, talvez a mais democrática das instituições brasileiras. No contexto de guinada econômica que se anuncia, a hora é agora.